Vanessa Monteiro & Paulo Soares
Povos Indígenas no Brasil e o COVID-19: um caso de descaso
Actualizado: 29 abr
A situação dos povos indígenas brasileiros sempre foi de luta. Com a gestão do atual presidente Bolsonaro essa luta se intensificou e hoje, devido ao COVID-19, se torna ainda mais urgente. Não se pode esperar ajuda do poder público. A sociedade brasileira deve, através do esforço coletivo, reverter esse quadro.

Dentre tantos assuntos abordados nos últimos dias nos noticiários pouco se fala da situação indígena, cuja população se encontra vulnerável, especialmente por conta da pandemia do COVID-19. De acordo com números apresentados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), estima-se que em 1500 a população indígena no Brasil girava em torno dos 3 milhões de pessoas. Número que hoje reduziu-se para cerca de 900 mil, de acordo com o censo mais recente de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar da população indígena ter 252 povos distribuídos por todo o território nacional, o mesmo censo aponta que a nossa população nativa é uma fatia de apenas 0,4% da população total brasileira. Uma redução significativa em um período de 520 anos de História do Brasil, o que claramente demonstra a necessidade de legislações que garantam os direitos desse povo que sofre na pele os efeitos do avanço da economia, da agricultura, do desmatamento, das queimadas, e de doenças.

Desde a chamada redemocratização, período que sucedeu os tempos de ditadura militar, vigente de 1964 até 1985 no Brasil, a situação dos povos indígenas tem evoluído de forma bastante tímida. É verdade que a Constituição de 1988 trouxe importantes avanços nas leis que os protegem, como o fortalecimento da FUNAI cuja finalidade é proteger os direitos dos povos nativos do país. Porém, apesar dos avanços na área jurídica, ainda há muito o que se melhorar para permitir uma vida digna a esses povos.
Praticamente durante os mandatos de todos os presidentes eleitos após a redemocratização houve manifestações por parte de comunidades indígenas reivindicando os direitos conquistados para garantia da sua sobrevivência. Estas manifestações são necessárias para chamar atenção dos diversos setores da sociedade para as ameaças como a grilagem (apropriação indevida) de terras indígenas, massacres liderados por garimpeiros e madeireiros ilegais, e as vezes até mesmo o descaso do poder público com a situação dos povos indígenas.
No tocante ao poder público, a situação apresentou piora com a atual gestão do presidente Jair Bolsonaro, quem, por diversas vezes, demonstrou seu desprezo pela cultura e pelos povos indígenas (e outras minorias, como os quilombolas) do país. Um artigo publicado na webpage da ONG internacional Survival, que luta pelos direitos indígenas, compila frases do presidente Jair Bolsonaro, entre as quais ele se refere a indígenas como “pobres coitados”. Além do que, a gestão Bolsonaro parece comprometida com a derrubada da Floresta Amazônica. Entre janeiro e abril de 2020, quando comparado ao mesmo período do ano anterior, houve um aumento de 64% no desmatamento da área de floresta nativa, de acordo com o sistema Deter do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Estes dados foram amplamente divulgados pelos noticiários brasileiros, como através do site UOL e do jornal O Estado de São Paulo. Tal estatística coincide com o período de começo da pandemia de COVID-19 no Brasil. E, ao que tudo indica, isso não é mera coincidência.
Recentes declarações feitas pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, deixam claro que o objetivo do ministério não é a proteção da floresta e sim a sua substituição. Ricardo, por sua vez, atuou como secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e foi acusado de más práticas em relação a temática ambiental. Recentemente, ele se envolveu em novas polêmicas quando a gravação de uma reunião ministerial ocorrida no último mês de abril veio à tona, revelando as intenções do ministro de se aproveitar do período da pandemia, visto a ênfase da mídia no coronavírus, e flexibilizar as leis de proteção ambiental. Ou seja, “deixar passar a boiada”, em referência a expressão utilizada pelo próprio Salles durante a reunião, divulgada pelo jornal O Globo.

Não é de se surpreender, portanto, que os povos indígenas estejam entre os mais afetados pela pandemia provocada pelo COVID-19. Na realidade sua sobrevivência nunca esteve tão ameaçada. Historicamente, esses povos tendem a ser mais afetados por doenças importadas do velho continente e o mundo globalizado faz com que essas enfermidades cheguem mais rápido até suas aldeias. Sebastião Salgado, renomado fotógrafo brasileiro e ativista ambiental, chama a atenção para o fato de que o atual descaso do poder público pela situação indígena pode levar ao extermínio de comunidades inteiras. O fotógrafo e sua esposa Lélia criaram um manifesto através da plataforma Avaaz na forma de um “apelo urgente ao presidente do Brasil e aos líderes do congresso e do judiciário”. O manifesto, que pode ser assinado através deste link, tem como objetivo exigir do poder público proteção das comunidades indígenas contra a pandemia do COVID-19, visto que o vírus pode dizimar estes povos.

No entanto, manifestos não irão garantir que tribos isoladas estejam livres da ameaça de extinção pelo COVID-19. É preciso que se combine ao apelo feito por Sebastião e Lélia ações concretas por parte de outros setores da sociedade, incluindo a população em si, para que se possa levar auxílio imediato até esses povos. Felizmente tais atitudes existem e dentre as quais pode-se citar a da organização Amazônia Contra a COVID-19, que visa levantar recursos para auxiliar etnias que vivem na região da Floresta Amazônica, como os Miranha, Ticuna, Kambeba, Wayuri, Sataré-Mawé e Teharin. A iniciativa da organização surgiu através de professores da Universidade Federal do Amazonas de Paritins e visa angariar fundos para a compra e distribuição de kits de higiene e cestas básicas, através da plataforma www.amazoniacontracovid.org.br.
O Brasil atravessa um dos seus momentos mais delicados, enfrentando ao mesmo tempo uma crise econômica, política, ambiental e, recentemente, de saúde pública. É fato que nesse contexto as comunidades que estão à margem da sociedade são as mais afetadas, dentre elas, os grupos indígenas. Estes vem sofrendo diretamente os impactos destas crises através do descaso pela vida indígena por alguns representantes da classe política e do setor público, pelo difícil acesso a bens, serviços e empregos, pela pressão sobre seu espaço causado - entre outros - pelo desmatamento e pela ameaça causada pelo COVID-19. A sociedade tem um papel fundamental para a reversão desse quadro, seja através de ações diretas ou através da pressão sobre o poder público. É também importante que haja discussão, reflexão e aprendizado sobre os costumes e cultura indígena para que cada vez mais entenda-se a importância desses povos para o futuro da nação brasileira e possa-se assim salvaguardar a sua existência.
Fontes consultadas:
Amazônia, Portal. UFAM Parintins lança campanha “Amazônia Contra a Covid-19” que busca doações para ajudar povos da floresta. Portal Amazônia + FRAM. Disponível em: https://portalamazonia.com/noticias/cidadania/ufam-parintins-lanca-campanha-amazonia-contra-a-covid-19-que-busca-doacoes-para-ajudar-povos-da-floresta
Brasil, Survival. 2020. O que Jair Bolsonaro, Presidente-eleito, disse sobre os povos indígenas do Brasil. Survival Brasil. Disponível em: https://survivalbrasil.org/artigos/3543-Bolsonaro
FUNAI. Índios no Brasil – Quem são. Fundação Nacional do Índio. Disponível em http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao?limitstart=0#
FUNAI. Quem Somos. Fundação Nacional do Índio. Disponível em http://www.funai.gov.br/index.php/quem-somos
IBGE. 2010. Indígenas. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em https://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena
Ricardo, B. & Ricardo, F. 2011. Povos indígenas no Brasil: 2006/2010. Instituto Socioambiental.
TELAM. 2020. El fotógrafo Salgado y su esposa alertan sobre un posible "genocidio" indígena en Brasil. Telam Agencia Nacional de Noticias. Disponível em: https://www.telam.com.ar/notas/202005/459201-salgado-alerta-genocidio-indigena-brasil.html
UOL. 2020. Desmatamento na Amazônia aumenta 64%. Universo Online em parceria com a Agência Estado. -Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/09/desmatamento-na-amazonia-aumenta-64.htm?cmpid=copiaecola